A expressão portuguesa corporativismo comporta uma pluralidade de significações, dado que a palavra é fixadora de variadas ideias e de contraditórios sentidos. A conotação semântica dominante faz ligar a palavra ao mais estrito dos significados da mesma, a doutrina oficial que adjetivava, na lei fundamental, o regime político da Constituição de 1933, aí dito república corporativa dado pretender assentar nos então chamados elementos estruturais da nação, isto é, da família, das autarquias locais e dos organismos corporativos. Um círculo semântico maior associa a palavra à ideia de ordem corporativa da sociedade, conforme foi vocabularmente defendida pela doutrina social da Igreja Católica, desde as encíclicas Rerum Novarum, de 1891, e Quadragesimo Anno, de 1931, ao próprio discurso do papa Pio XII. A terminologia foi, entretanto, abandonada e o atual discurso da doutrina social e política da Igreja Católica, mantendo os mesmos príncípios, nomeadamente o entendimento da sociedade como o conjunto de pessoas ligadas, de modo orgânico, por um princípio de unidade, que ultrapassa cada uma delas (in Catecismo da Igreja Católica, 1880), prefere invocar o princípio da subsidariedade, isto é, defender que nem o Estado nem qualquer sociedade mais abrangente devem substituir-se à iniciativa e à responsabilidade da pessoa e dos corpos intermédios (idem, 1894), e utilizar os nomes de comunitarismo e de solidariedade. Curiosamente, o princípio da subsidariedade também foi recuperado pelos textos fundamentais da União Europeia e, através de uma releitura tecnocrática, voltou a estar vigente em Portugal, agora para traduzir a ideia da relação da ordem comunitária com as ordens estaduais, regionais e locais, querendo significar que uma das ordens superiores não pode interferir na esfera de autonomia da, ou das, ordens inferiores, impondo uma devolução de poderes para baixo, bem como uma conceção funcional dos que se situam nas ordens que se encontram no vértice ou nas partes cimeiras desta estrutura escalonada. De forma ainda mais ampla, o corporativismo pode coincidir com uma conceção orgânica do Estado e da sociedade, abrangendo tanto os corporativismos de Estado, de cunho hierarquista, como os corporativismos de associação, de matriz consensualista e pluralista. Começando pelo sentido mais lato da expressão, podemos dizer que ela abarca todas as tentativas doutrinárias que tentaram ultrapassar a perspetiva jacobina, simultaneamente individualista e estatista, que apenas admitia um diálogo direto entre o cidadão e o centro do aparelho de poder, sem admissão de corpos intermediários, dotados de politicidade. Neste sentido alargado e aberto, o corporativismo aproxima-se das palavras corporatism da língua inglesa e corporatisme dos franceses, as quais podem ser traduzidas pelos neologismos corporacionismo ou corporatismo, abrangendo todas as perspetivas que, na senda da defesa dos corpos intermediários de Montesquieu, assumiram as conceções organicistas, consensualistas e pluralistas do político. Aí podem caber os teóricos do historicismo romântico, que tomaram partido por um conceito de povo orgânico, marcado por um espírito, por uma alma ou por uma consciência, elentos que vão marcar os nacionalismos; os variados positivismos defensores do organicismo naturalista e quase biologista, como Bluntschli (1808-1881), Zachariae (1769-1843), Sãchffle (1831-1904), Lorenz von Stein (1815-1890) e Ludwig Gumplowicz (1838-1909), bem como os nossos Joaquim Maria Rodrigues de Brito (1822-1873) e Manuel Emídio Garcia (1838-1904); os teóricos do organicismo psíquico como Otto von Gierke (1841-1913) que falam no Estado como unidade vital e nas comunidades sociais com uma natureza simultaneamente corpórea e espiritual; os defensores da antropogeografia e os primeiros teóricos da geopolítica, como Rudolf Kjellen (1864-1922); os defensores do evolucionismo organicista como Herbert Spencer (1820-1903); os que perspetivaram o Estado como cérebro social, como Émile Durkheim (1858-1917); e os próprios socialismos utópicos, nomeadamente os que fizeram ponte com o federalismo, como os das teses de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). Nestes termos, podemos dizer que, no plano do subsolo filosófico, o século XIX tentou preparar o século seguinte como o século do estruturalista ou institucionalista, para darmos sentido paralelo à desiganção de siècle du corporatisme, do romeno Manoïlesco, tão invocado pelos nossos corporativistas dos anos trinta. Entre nós, ganharam, contudo, relevo quatro correntes doutrinárias, duas de influência germanista, como o krausismo e o socialismo catedrático e duas de importação francesista, do solidarismo ao institucionalismo. Em primeiro lugar, importa destacar o krausismo, isto é, as vulgarizações do idealismo alemão consagrado por Krause (1781-1832), através das lições de direito natural do professor de Bruxelas Heinrich Ahrens (1807-1874), que, entre nós, recebe o impulso da criatividade de Vicente Ferrer Neto Paiva (1798-1886) e chega a António Costa Lobo(1840-1913). Foi, graças a este corretivo que o nosso demoliberalismo se regenerou e se nacionalizou, a partir de 1851, numa posição paralela às próprias teses do emigrado Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), influenciador de Proudhon e Blanc, mas que acabou por não ser profeta na sua própria terra. Neste sentido, um corporacionismo organicista marca toda a perspetiva portuguesa da segunda metade do século XIX, como transparece do Manual Político do Cidadão Portuguez de Trindade Coelho, de 1906. Em segundo lugar, a intuição de um intervencionismo estadual na questão social, face às experiências de Napoleão III e Bismarck, quando ficam delineados os esquemas do Estado-Providência, chega-nos através do chamado socialismo catedrático que, entre nós, teve como pioneiros Oliveira Martins (1845-1895) e José Frederico Laranjo (1846-1910). Os sinais dos tempos deste novo intervencionismo são entretanto reforçados pelas doutrinas francesas da École Social de Pierre-Guillaume le Play (1806-1883) que, através do Professor Marnoco e Sousa (1869-1916), vão influenciar diretamente o assistente deste, António de Oliveira Salazar (1889-1970). Segue-se o influxo, também galicista, do solidarismo de Léon Bourgeois (1851-1925) e Émile Boutroux (1845-1921) que tanto marca as novas correntes do socialismo francês, como, pela perspetiva de Léon Duguit (1859-1928), influencia, nos anos vinte, o sindicalismo integral do nosso Fezas Vital (1888-1953). Este mesmo professor, um dos redatores do projeto da Constituição de 1933, é também um dos introdutores em Portugal das teorias institucionalistas de Maurice Hauriou (1856-1929) e Georges Renard (1867-1943) que, nos anos trinta, permitem uma atualização das teorias corporativistas, fazendo-as ligar ao próprio neotomismo. Curiosamente, não têm influências em Portugal as teses organicistas que marcam o renascimento do pluralismo liberal e socialista no mundo anglo-saxónico, como transparece das obras de F. W. Maitland (1850-1906), John Neville Figgis (n. 1866), H. Belloc (1870-1953), Arthur Fisher Bentley (1870-1957) e Harold Laski (1893-1950). Toda uma geração que, em nome de uma variedade de crenças, acabou por convergir num modelo consensualista e pluralista que se insurgiu contra o estatismo. Passando para o primeiro círculo semântico, pela conceção restrita, que faz ligar a expressão à imagem de poder do regime salazarista, diremos que tal corporativismo pretendia assumir-se como uma espécie de dupla terceira-via que tanto visava superar o capitalismo e o socialismo, como responder aos desafios dos totalitarismos fascista e comunista. Era esse o tom dos principais doutrinadores do regime, desde os discursos de António de Oliveira Salazar aos vários autores de lições de direito corporativo das universidades públicas, nos anos áureos do Estado Novo, entre os quais se destacaram os professores Marcello Caetano e Cunha Gonçalves – em 1935 -, Mário Figueiredo e Costa Leite – em 1936 -, Teixeira Ribeiro – em 1938 -, e Fezas Vital -em 1940. Neste ambiente sobressaem, aliás, duas teses de doutoramento em direito, a de Francisco Inácio Pereira dos Santos, em Lovaina, 1935, sobre o Estado Corporativo, e a de António Jorge da Motta Veiga, em Lisboa, 1941, sobre a economia corporativa e o problema dos preços. Como exceção à regra, destaque para a defesa do corporativismo fascista, por Castro Fernandes, em 1938. Acrescentaremos que a experiência portuguesa do construtivismo salazarista quando falava em corporativismo, dentro da contraditória genealogia das ideias a que poderia recorrer, escolheu sempre as influências da doutrina social da Igreja Católica e do socialismo catedrático. Na prática, as circunstâncias levaram a que a teoria fosse outra, gerando-se uma nebulosa ou um hibridismo que tanto recebeu inequívocas influências do corporativismo fascista de Mussolini nomeadamente nalgumas das palavras fundamentais da Constituição e do Estatuto do Trabalho Nacional, como acabou por pautar-se pelos modelos neutros de intervencionismo económico do Estado-Providência. Assim, principalmente por influência da economia de guerra, foi sendo adiado o lançamento dos chamados organismos corporativos e, contra o programa inicial, ganharam relevo os organismos de coordenação económica que, no pós-guerra, se adequaram à perspetiva portuguesa do planeamento, sendo paralelos aos modelos sócio-profisssionais, às organizações de produtores e às entidades mistas de regularização dos mercados da restante Europa ocidental. Contudo, o corporativismo salazarista, paralelo à experiência austríaca de Dolfuss, liquidada pelo nazismo, acabou por se transformar num corporativismo estatal, sem economia de mercado, mas com economia privada, aproximando-se do intervencionismo proposto pelo socialismo catedrático. Paradoxalmente, algumas das fundamentais contestações ao corporativismo salazarista vêm de correntes com idênticas origens. A contestação do socialismo cooperativista de António Sérgio (1883-1969) mergulha num associativismo guildista e numa ideia de autogoverno tão anticapitalista e tão não-individualista quanto as conceções sociais de Salazar. A contestação dos católicos critica o mesmo corporativismo por não ser suficiente corporativo. Disso é sintomática a carta dirigida em 13 de julho de 1958 pelo Bispo do Porto, D. Antonio Ferreira Gomes, a Salazar, segundo a qual o corporativismo foi realmente um meio de expoliar os operários do direito natural de associação, de que o liberalismo os privara, e que tinham reconquistado penosa e sangrentamente. O mesmo Bispo do Porto, aceitando em Salazar a lucidez do raciocínio e o bem fundamentado das posições em matérias de política externa e de política ultramarina, criticava acerbamente o salazarismo social, observando, de forma incisiva, que a Igreja “comprometeu-se”, não com o Estado corporativo, mas com a ordem corporativa da sociedade, citando Pio XII, para quem se cometeria uma injustiça, ao mesmo tempo que se perturbaria seriamente a ordem social, se fossem retirados aos agrupamentos de ordem inferior as funções que esses agrupamentos estariam em condições de exercer eles próprios. Com efeito, o corporativismo salazarista distanciou-se da vertente societária ou associativista que o corporativismo em sentido amplo exigia, pelo menos na vertente da doutrina social católica, como veio a ser particada pela economia social de mercado da geração democrata-cristã do pós-guerra, não podendo aproximar-se daquilo que estava em vigor nos regimes não-autoritários de Estado-Providência, essa forma que o neo-marxismo qualifica como Estado social-democrata e que outros referem como corporatismo liberal. Aliás, quando o regime da constituição de 1933 foi derrubado, emergiu um modelo socialista, de cariz coletivista, que manteve alguns dos instrumentos legislativos do intervencionismo salazarista, dado que, com ele coincidia, no plano do estatismo. As formas das nacionalizações e da própria criação de empresas públicas, tão utilizadas pelo gonçalvismo e pelo socialismo revolucionário, depois dos acontecimentos de 11 de março de 1975, vinham, aliás, do antigo regime. Mesmo na fase pós-revolucionária do regime da Constituição de 1976, mantiveram-se e alargaram-se alguns dos elementos introduzidos pelo salazarismo, principalmente as pessoas coletivas públicas das ordens profissionais. Recentemente, alguns autores, como Schmitter, Wilensky e Panitch, falam num neocorporatism, logo traduzido, entre nós, por um equívoco neo-corporativismo que, pretendendo qualificar os esquemas gestionários do Welfare State, tanto na perspetiva liberal como na social-democrata, apela a uma espécie de restauracionismo do vocabulário salazarista, demonizado depois de 1974. Falam na emergência de novas formas de corporativismo, enquanto modos específicos de representação de interesses do atual modelo de organização do político das sociedades desenvolvidas, onde os atores sociais são organizados num número limitado de categorais funcionais, obrigatórias e, disciplinadas e organizadas, onde não funciona a concorrência, dado que são criadas, autorizadas, fomentadas ou apoiadas pelos governos, beneficiando de uma espécie de monopólio representativo, como acontece quando se atribui o estatuto de parceiro social a determinadas categorias de organizações sócio-profissionais ou se instituem as chamadas ordens, onde o carácter sindical ou patronal se mistura com atributos da soberania. Deste modo, se procura coordenar a vida social e económica, estabelecendo-se as regras do jogo e o próprio modelo de antagonismos dentro do status vigente. Neste sentido, o neo-corporatismo, tende a traduzir a ideia da existência nos atuais modelos práticos de organização política de formas mais amplas do que os meros grupos de interesse, esses novos corpos intermédios, entre a sociedade e o Estado que procuram responder à crise da representação política, do sindicalismo, do associativismo patronal e da própria cidadania. Mas, contrariamente ao pluralismo, onde as organizações são rivais e nascem da autonomia da sociedade civil, essas entidades híbridas resultam da proteção do centro do aparelho de poder estadual, cujos decretos e práticas escolhem as entidades ditas representativas, independentemente da autenticidade associativa das mesmas.

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